CAMINHO ATÉ O MAR

Quando passa da Baía do Iguape o Paraguaçu já não é mais o mesmo e segue se transformando até o fim.

 
SÃO FRANCISCO DO PARAGUAÇU 
Últimos Momentos

Beatriz Oliveira

No lugar onde o céu e o Paraguaçu se confundem, Seu Antônio para por um instante e admira a paisagem. Olhando o rio no píer de São Francisco do Paraguaçu, distrito de Cachoeira, ele lembra de quando via saveiros atracando ali. As embarcações vinham do Terminal Marítimo do Comércio, em Salvador, três vezes por semana para fazer o transporte de pessoas e mercadorias. Ele mesmo costumava fazer a travessia. Talvez por ironia do destino, hoje, aos 51 anos, Antônio Gonçalves é justamente o guardião do Convento de Santo Antônio do Paraguaçu.

Antônio Gonçalves observa o rio Paraguaçu

Antônio Gonçalves observa o rio Paraguaçu. (FOTO: Beatriz Oliveira)

Seu Antônio começou como vigilante do convento em 2009. Agora, mesmo depois de aposentado, ele continua cuidando do espaço, varrendo, procurando infiltrações e outros problemas estruturais, cortando a grama que cresce sobre o piso e recebendo visitantes. “Às vezes as pessoas chegam aqui e não tem ninguém, aí vão me procurar em casa. Eu sempre dou um jeito de ir lá levar os visitantes. Até que uma outra pessoa seja contratada para ficar no meu lugar eu prefiro ficar aqui, porque eu não quero fazer esse papel de dizer para as pessoas que o convento tá fechado”.

“Eu não quero fazer esse papel de dizer para as pessoas que o convento está fechado”
-- Antônio Gonçalves, guardião do convento --

A história do Convento de Santo Antônio começou em 1649, séculos antes de Seu Antônio nascer. O movimento de embarcações na região já era parte da rotina dos moradores. Em vez dos saveiros e dos pequenos barcos de hoje, grandes navios atracavam ali. Na época, os senhores de engenho das cidades vizinhas solicitaram à Igreja Católica a construção de um Noviciado, ou seja, uma escola para a formação de padres. Quando ficou pronto, em 1658, navios vindos de diversas partes do mundo chegavam em São Francisco do Paraguaçu.

O noviciado tinha a igreja, onde eram realizadas as missas, quartos, cozinha, banheiros, biblioteca, alguns jazigos, além de outros espaços. As torneiras tinham água fria e quente, já que naquele período fazia mais frio em algumas épocas do ano. Com o tempo, o convento se deteriorou, teve os móveis vendidos e saqueados e acabou fechando.

Convento de Santo Antônio do Paraguaçu. (FOTO: Beatriz Oliveira)Tendo o Paraguaçu como porta de entrada e com uma importância histórica imensurável, o lugar onde hoje estão apenas ruínas ajudou na independência do Brasil na Bahia, viu a Invasão Holandesa, e sediou o hospital Nossa Senhora de Belém, que funcionou como a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, atualmente em outro hospital no centro da cidade. Alguns anos depois de inaugurado, o noviciado recebeu um leigo, uma pessoa que não teve uma iniciação religiosa, que mudou a história do convento.

Devido à sua história, o convento chegou a ser tombado pelo IPHAN em 1941, quase 300 anos depois de inaugurado, mas ainda carece de ajuda para se manter. O aposentado, que está há 9 anos no local, é quem recebe os visitantes, contando mais da história do lugar, que ele mesmo procurou descobrir. Algumas pessoas que chegavam para conhecer o espaço traziam mais informações e outras ele mesmo acabava se esbarrando enquanto trabalhava. “Eu já achei ossadas aqui, livros, sepulturas. Uma vez achei um fêmur com uma corrente amarrada”.

O convento permaneceu fechado por muitos anos. Mas, se quando era criança Seu Antônio via os saveiros atracavam ali várias vezes por semana, agora, ele fica a ver navios na espera de embarcações com turistas para visitar o convento. A falta de divulgação, de outros atrativos culturais e de reformas necessárias faz com que os visitantes não cheguem até ali. Além da importância no transporte dessas pessoas, para o guardião do convento, se não fosse pelo Paraguaçu, o lugar nem existiria. Seu Antônio sabe bem a importância do rio para o lugar.

Depois de passar por São Francisco do Paraguaçu, o rio segue rumo a Maragogipe, cidade do outro lado do rio. A partir daí, a água deixa de ser exclusivamente doce e se torna salobra e, aos poucos, o Paraguaçu vai deixando de existir.

Barcos atracados no píer de Maragogipe. (FOTO: Beatriz Oliveira)
 
MARAGOGIPE 
O início do fim

Uma idosa negra, rabugenta, que gosta de receber presentes e castiga quem ousar fazer mal aos manguezais. Essa é a Vovó do Mangue, uma das lendas mais comuns entre os moradores de Maragogipe, cidade com cerca de 44 mil habitantes, localizada a 142 km de Salvador. De acordo com a história, quem entra nos manguezais e fica perdido precisa oferecer algo para a senhora se quiser achar o caminho de volta. Por garantia, os pescadores e as marisqueiras da cidade sempre andam com um dente de alho, uma cachaça e um pouco de pó de fumo - oferendas que a velhinha mais gosta.

A lenda da Vovó do Mangue dá nome a uma importante fundação da região que se dedica a preservar os manguezais, principal base econômica da cidade. Carlos Oliveira, o Carlinhos de Tote, é gerente de meio ambiente da fundação e criou uma forma diferente de conscientizar os visitantes sobre a importância de preservação do ecossistema.

Observando as paredes lisas das duas sedes da fundação, Carlinhos cria histórias relacionadas aos manguezais. Com gesso e criatividade, ele forma animais, vegetações e pessoas. Aos poucos, esses personagens vão sendo apelidados com os nomes de moradores da comunidade. Os próprios frequentadores do lugar fazem as comparações. “Quando eu fiz um desses trabalhos, uma senhora aqui da comunidade deu o nome um outro morador ao personagem. Esse senhor já veio a falecer, mas todos os dias ela vem até na nossa sede e conversa como se realmente fosse ele”, diz Carlinhos.

A pesca e a mariscagem são as bases para a economia de Maragogipe. Quando o rio começa seu encontro com o mar, a água salobra formada por essa mistura se torna o berço para a vida aquática. Cerca de 70% dos animais marinhos passam em algum momento pelas regiões de manguezais espalhadas pelo mundo, sejam de água doce ou salgada. Para os pescadores e marisqueiras de Maragogipe, mais do que um santuário, ali está a base do sustento das famílias.

A marisqueira Rita começou a trabalhar aos 13 anos, ajudando o pai a pescar. Hoje ela segue com a profissão de mariscagem e pesca junto com o marido e, nas horas vagas, é voluntária na fundação Vovó do Mangue. Para Rita, mariscar não é só uma forma de ganhar dinheiro, mas também algo prazeroso, que lhe faz feliz.

A fundação também ensinou Rita a realizar o trabalho de mariscagem sem prejudicar o meio ambiente. No entanto, o uso incorreto das ferramentas de trabalho pelos ribeirinhos que não tinham ainda uma consciência ambiental agredia o rio. E foi então que surgiu a Vovó do Mangue, que tem entre as funções a preservação e a recuperação dos manguezais da região, a conscientização ambiental e a capacitação de pessoas da comunidade para ajudar na proteção do ecossistema, além de outros atributos.

Sede ambiental da fundação Vovó do Mangue. (FOTO: Beatriz Oliveira)

No início, o projeto Vovó do Mangue não tinha uma ligação direta com o meio ambiente. Ele começou como uma banda de rock e, apesar de ter adquirido um caráter de preservação ambiental e ter ganhado outros integrantes, o grupo continua até hoje. Um dos membros, Francisco Alecy, na fundação tem o papel de diretor geral, enquanto na banda é o baixista.

Maragogipe é o lugar onde o Paraguaçu realmente começa o seu fim. Como a água doce já recebe a salgada. Há quem acredite que, depois da cidade, o rio já não existe mais. Mas ele ainda segue até Barra do Paraguaçu, em Salinas da Margarida, quando a água salgada toma o controle do fim do rio.

 

 

Pôr do sol no píer de Barra do Paraguaçu, em Salinas da Margarida. (FOTO: Beatriz Oliveira)
 
BARRA DO PARAGUAÇU 
Onde rio e mar se confundem

O Paraguaçu, que sai de uma Barra (da Estiva) para outra (do Paraguaçu), encontra ao longo do caminho verdadeiros protetores. Se da nascente até a foz, o rio sofre com o uso em excesso, a seca, a poluição e a falta de cuidados, em compensação, a consciência e a vontade de proteção de algumas pessoas permite que ele se mantenha forte até o fim.

Em Barra do Paraguaçu, um pequeno povoado em Salinas da Margarida onde a maioria das casas é de veraneio, não se pode distinguir o que é rio do que é mar. Uma prainha e um farol enfeitam o lugar de águas cristalinas. Os poucos moradores da cidade, assim como os de Maragogipe, vivem basicamente da pesca e da caça de mariscos. Na outra margem do rio está Bom Jesus dos Pobres, distrito de Saubara que se assemelha à Barra do Paraguaçu com a forma calma de vida e as temporadas cheias de visitas.

É ali, entre o distrito e o povoado, que o maior rio que nasce e morre dentro de território baiano se despede. De lá em diante, a força do mar avança sobre o rio, que, apesar de largo, parece fraco diante das águas salgadas e da correnteza marinha. As transformações continuam por todos os 614 km do Paraguaçu. As histórias, o trabalho e a vida ficam pra trás, mas seguem os dias em seu leito.

E, a cada dia, o meu, o seu, o nosso Paraguaçu enfrenta os obstáculos e se renova, sendo a forma de transporte de centenas, permanecendo como o berço de milhares, abastecendo a vida de milhões de baianos. Se mostrando mais do que um rio, uma fonte de vida.