Chico Ribeiro Neto

Uma garota de sardas (que nunca mais tive a coragem de procurar)

Restou a foto dela, de maiô, e uma dedicatória

Foto: Cottonbro
sardas

Meu pai Waldemar dava uma lança-perfume a cada um dos quatro filhos. Eu lembro que jogava “lança” no travesseiro para cheirar e ouvir o tuim-tuim-tuim. Mas o efeito acabava logo e tinha que jogar mais no travesseiro até dormir. A lança-perfume “rodoro metálico” era liberada, inclusive para crianças.

Avenida Sete de Setembro 239, defronte ao Colégio das Mercês, foi minha primeira morada em Salvador. Do velho casarão, uma pensão arrendada por meus pais, só há hoje a fachada, o resto já desabou e é um grande oco de saudade, mas a placa do 239 ainda está lá. Quando chegamos de Ipiaú, onde nasci, para a Avenida Sete, eu tinha uns seis ou sete anos. Devia ser 1954 ou 55, ainda peguei o bonde para a Praça da Sé.

No Carnaval havia o desfile de três grande clubes com seus carros alegóricos: Inocentes em Progresso, Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe. Para a gente ver o desfile, meu pai colocava umas três cadeiras de lona no passeio, amarradas umas nas outras com as iniciais pintadas WB, de Waldemar Brandi. Quem vinha depois amarrava suas cadeiras às nossas e formava-se aquela enorme fileira em toda a Avenida Sete. Quando você chegava para sentar e tivesse alguém na sua cadeira era só falar “dá licença, essa cadeira é nossa” que o cara saía na hora.

Ninguém podia atravessar a Avenida Sete durante o desfile. Meu tio Hugo estava do outro lado, no Colégio das Mercês, e então fingiu um desmaio. O desfile parou, tio Hugo atravessou a rua carregado por amigos e entrou andando no 239, sob vaias.

Havia ainda as escolas de samba. “Diplomatas de Amaralina”, “Juventude do Garcia”, “Filhos do Tororó” e “Ritmistas do Samba” eram as principais.

Segundo o historiador Nelson Cadena, “durante quase uma década, entre 1963 e 1972, as escolas de samba reinaram absolutas no Carnaval da Bahia e eram elas que a mídia destacava nas suas manchetes de primeira página com muitas fotos; aos trios elétricos era reservado apenas um espaço acanhado, em geral nas páginas internas, com menor presença inclusive do que os bailes de Carnaval dos clubes Bahiano de Tênis, Associação Atlética, Iate, Português, Palmeiras e outros”.

Comecei a frequentar os bailes infantis de Carnaval no Fantoches da Euterpe, Clube Comercial e na Associação Atlética da Bahia. Quando não havia um parente para botar a gente pra dentro da festa, nossa turma se dividia em grupos de dois e procurava na fila um pai com um ou dois filhos: “Moço, dá pra gente entrar também como filho do senhor?” Alguns se recusavam, mas outros davam aquele sorriso cúmplice: “Entrem aí”.

Foi no Clube Comercial, na Avenida Sete, que existe até hoje e promove tardes dançantes, que comecei a pular Carnaval com a garota S., que tinha sardas encantadoras (até hoje, quando vejo Rita Lee me lembro dela).

A orquestra parou, chegou a hora de falar pra namorar, ela disse que ia pensar e foi ao  banheiro com a amiga, que voltou e perguntou: “Ela mandou perguntar quantos anos você tem?” “Dezesseis”, respondi, escondendo os 14. A amiga foi ao banheiro e trouxe a resposta: “Ela disse que se você tivesse 17 que ela queria”. “Miséria, por que não falei 17?” Mesmo assim, não arredei o pé da porta do banheiro. A orquestra voltou a tocar, abracei-a pela deliciosa cintura, “idade não é problema quando existe amor”.

“Corre, corre, lambretinha/ Pela estrada além...”; “Quem sabe, sabe/ Conhece bem/ Como é gostoso/ Gostar de alguém...”; “Se a canoa não virar/ Eu chego lá...”

Começamos a namorar. Ela morava na Saúde e tinha um pai brabo. O pessoal gostava de namorar atrás da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato porque era bem escurinho. Uma vez estava lá com S. dando uns apertos quando vi era uma lanterna apontada para nós com um PM gritando: “Saiam já daí, saiam. Não podem ficar aí”.  Aqueles casais constrangidos e os policiais pareciam ter prazer no que faziam. Inveja pura.

O pai de S. dizia: “Se eu chegar em casa às 8 da noite e você não estiver, o couro vai comer”. A gente se beijava espiando o relógio. Uma noite ali defronte ao Sesc, na entrada da Saúde, eu queria mais um beijinho e de repente um grito: “Meu pai”, e S. saiu em disparada para casa e eu picado para pegar o ônibus. Nunca mais voltei. Ela não deixou o celular (kkk) e eu fiquei com medo de apanhar. Restou a foto dela, de maiô: “Ao meu querido lindo. De sua querida feia”.

Uma boa história de um folião já grande. “Géo Beleza” tinha uns 20 anos e estava com um grupo numa barraca no Largo de São Bento, sábado de Carnaval. Havia três caras jogando capoeira e o mais forte de todos pedia cigarro e alguns goles de cerveja e acabou se enturmando.

Quem conta é o próprio Géo Beleza: “O grandalhão passou a fazer parte do nosso grupo e, por ter um corpo avantajado e uma cabeça pequena do tamanho de um tijolinho, foi por mim apelidado de “Trivellato”, carroceria de caminhão Scania. Ele se tornou nosso eficaz segurança do grupo e as meninas inventavam ir ao Campo Grande e lá ia nosso segurança abrindo uma avenida no meio da multidão.

Passamos ainda o domingo com o nosso trator alegórico. Veio a segunda, terça e sentimos falta de nosso amigo “Trivellato”. Na tristeza da Quarta-Feira de Cinzas recebo um telefonema de Carlos Guedes: “Géo, você já leu A Tarde, hoje?” Não”. “Pois leia”. Lá estava a foto de “Trivellato”, para nós um excelente abridor de avenida na folia, mas para a Polícia um tremendo arrombador”.